“Tem um artigo na CLT que diz que todo empresário ou comerciante que for obrigado a fechar seu estabelecimento por decisão do respectivo chefe do Executivo, os encargos trabalhistas quem paga é o governador e o prefeito. Tá ok?”, disse o presidente da República Jair Bolsonaro no fim de março, em frente ao Palácio do Alvorada.
Depois da fala do presidente da República, algumas empresas passaram a adotar a estratégia. Uma delas foi a rede de churrascarias Fogo de Chão, que demitiu 436 pessoas em todo o país, pagou as verbas rescisórias devidas, como 13º e férias proporcionais, mas deixou de pagar o aviso prévio indenizado, que, na visão da empresa, deve ser pago pelos governos locais que tomaram medidas restringindo o funcionamento de serviços e comércios, como restaurantes. A empresa informou que se baseou no artigo 486 da CLT.
Mas uma empresa que demite seus funcionários em razão da suspensão de atividades em razão de decretos locais para conter a Covid-19 pode mesmo alegar que é responsabilidade do governo pagar os encargos da rescisão? Para especialistas, a questão não é tão simples assim, e essa alegação dificilmente será chancelada pela Justiça do Trabalho.
O artigo 486 da CLT prevê que, no caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ficará ao cargo do ente responsável o pagamento de uma indenização. O dispositivo aplica uma teoria do Direito do Trabalho conhecida como “fato do príncipe”, que é quando uma empresa é afetada por medidas tomadas por uma autoridade, de forma imprevisível e sobre a qual não pode fazer nada.
Na prática, é a Justiça quem decide quando este artigo pode ser aplicado. E tanto advogados de trabalhadores quanto de empresas entendem que dificilmente a Justiça do Trabalho o aplicará em relação a medidas tomadas para conter a Covid-19. Isso porque os decretos locais não se voltam a uma empresa ou atividade específica, não pretendem interromper em definitivo os serviços, e foram editados em prol da saúde pública e da sociedade como um todo.
Geralmente, a Justiça leva em consideração os motivos por trás dos atos de prefeitos, governadores e presidentes para decidir a aplicação da teoria do fato do príncipe. Além disso, a Justiça deve considerar que há medidas tomadas pelo governo federal que dão opções às empresas, como redução salarial e linhas de crédito para pagamentos de salários.
Para Cássio Casagrande, professor de Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF) e procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro (MPT-RJ), o fato do príncipe não deve ser aplicado nesse contexto de pandemia.
“Não houve a proibição de uma atividade específica, na verdade é uma decisão cujo objetivo não é paralisar uma atividade econômica, mas evitar aglomerações e atividades que potencialmente podem reunir um grande número de pessoas”, diz. “Entendo que não é aplicável para essa situação, inclusive porque o próprio governo encaminhou soluçõest para não haver a demissão, como a suspensão temporária de contratos de trabalho, e a redução de salário e jornada. Na hipótese do artigo 486, a única solução é o encerramento da atividade”.
Na visão de Ricardo Calcini, professor de Direito do Trabalho em cursos de pós-graduação e especialista em relações sindicais, o fato de o próprio governo ter considerado a Covid-19 um fato de força maior nas relações trabalhistas por meio da Medida Provisória 927/2020 acabou gerando esse entendimento pela aplicação do fato do príncipe. O fato do príncipe, explica Calcini, é um tipo de força maior, mas para sua aplicação é necessário observar alguns requisitos, como a intenção governamental de efetivamente interromper ou extinguir uma atividade.
“Todos nós estamos vendo decretos municipais e estaduais, que inviabilizam momentaneamente o desenvolvimento de algumas atividades. Só que essa paralisação momentânea não quer dizer que a atividade deixou de existir. Em nenhum momento qualquer governador, qualquer prefeito disse que a partir de agora não existe mais certa atividade”, explica. “A impossibilidade momentânea de dar prosseguimento a sua atividade está sendo interpretada por alguns empresários no sentido de que essa impossibilidade fosse uma proibição da atividade existir. Por isso, entendem que seriam responsabilidade do Estado”.
Justiça é quem decide
Em casos como o da Fogo de Chão, os trabalhadores demitidos podem acionar a Justiça contra a empresa, e não contra o poder público. O empregador, então, poderá acionar o ente público respectivo, que deverá se manifestar no processo. Caberá a um juiz decidir se o Estado deverá ou não pagar indenização a empresa referente às demissões.
Um ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), ouvido reservadamente, concorda que o entendimento de que o Estado não poderia arcar com verbas rescisórias porque o objetivo das medidas de governadores e prefeitos é proteger a sociedade, e não acabar com atividades empresariais. Além disso, a empresa deveria provar na Justiça que não havia outras medidas possíveis além da demissão.
A eventual aplicação do artigo 486 da CLT ainda gera dúvidas quanto aos valores que estariam compreendidos pelo seu texto. Isso porque o artigo foi inserido na lei antes da criação do FGTS, quando havia uma indenização paga aos trabalhadores em caso de demissão. Hoje, a indenização que seria devida pelo poder público às empresas é geralmente lida como a multa de 40% sobre o fundo de garantia. Há quem interprete, porém, que essa indenização também se refere ao aviso prévio – como foi o caso da Fogo de Chão. Há consenso que as outras verbas rescisórias, como salário residual, férias e 13º proporcionais e horas extras são sempre de competência do empregador.
De qualquer forma, a interpretação e aplicação do artigo 486 deve passar pelo crivo judicial, de maneira que não há segurança jurídica para quem resolva adotar o artigo em relação às medidas contra a pandemia da Covid-19. Advogados opinam que caso uma empresa acredite que o poder público deva ser responsabilizado por pagar parte das verbas rescisórias de eventuais demissões, é melhor que pague o devido aos funcionários e só depois acione o Judiciário para exigir uma reparação do Estado. Isso porque se as verbas rescisórias não forem quitadas em até dez dias após a demissão, a empresa pode ser condenada a pagar um salário adicional ao trabalhador.
A advogada Caroline Marchi, sócia da área trabalhista do escritório Machado Meyer, destaca que, inicialmente, a responsabilidade é do poder econômico. “É o empresário que paga e depois ele pede para ser ressarcido pelo poder público. Aí o poder público é chamado para falar no processo”, opina. “Mas, na maioria das vezes, se esse ato de restrição do governante for identificado como de necessidade da população, o fato do príncipe não é aplicado”.
O advogado João Gabriel Lopes, do Mauro Menezes Advogados, destaca que “a empresa não pode, por sua conta própria, estipular que atos de autoridades motivados pela pandemia constituem fato do príncipe” para aplicação do artigo 486. “Ela não pode deixar de pagar os valores devidos ao trabalhador, ela deve remunerar o trabalhador e, em seguida, buscar a reparação no Judiciário”, argumenta. “Ainda que se entenda que é o caso do fato do príncipe, o único valor que seria pago pelo Estado seria a multa dos 40% sobre o FGTS. Todas as outras verbas rescisórias devem ser pagas pela empresa ao trabalhador”.
Por enquanto, há poucas decisões relativas à aplicação do artigo 486 da CLT no contexto da pandemia da Covid-19. No dia 30 de abril, um juiz da 3ª Vara do Trabalho de Salvador determinou que a Marte Transportes LTDA reintegrasse dez funcionários demitidos devido à falta do pagamento da multa de 40% do FGTS. A empresa havia se negado a pagar a multa com base no artigo 486.
Outra decisão recente no mesmo sentido veio da Vara do Trabalho de Joaçaba, em Santa Catarina. A juíza Angela Maria Konrath determinou a reintegração de funcionários demitidos pela empresa Construtora Elevação LTDA, que pagou apenas 50% das verbas rescisórias aos trabalhadores alegando que as demissões ocorreram por “motivo de força maior”, e que por isso o Estado deveria arcar com o resto dos valores devidos.
Em nota, a Fogo de Chão informou que pretende reintegrar os funcionários demitidos posteriormente. “O zelo por nossos colaboradores sempre foi compromisso central da filosofia de trabalho do Fogo de Chão. Reforçamos que atuamos seguindo as normas do artigo 486 da CLT indenizando os membros da nossa equipe de acordo com a lei, para que todos tivessem acesso ao pagamento de férias e 13 salário, além do acesso ao Fundo de Garantia e Seguro desemprego. A expectativa do Fogo de Chão Brasil é, à medida que os restaurantes reabram e a economia melhore, recontratar gradualmente a nossa equipe”, disse.
FONTE: Matéria do site JOTA DE 21/05/2020
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